"TOCA A BANDA LÁ NO CORETO
(Festival Canção 1979 – l. C.A.Valente / m. C.Alberto Moniz)
Meu Caro Henrique Baptista
Não sei se este tempo de Natal é o certo para responder à interrogação/provocação que faz num dos seus últimos artigos no JA a este seu Amigo.
A bonança do tempo e o frio que enrijece os ossos ajudam a esta destemperada resposta em jeito de Boas-Festas.
Apesar de todos os cuidados que o tempo nos aconselha, não me tivesse eu vacinado aqui há tempos e seria apanhado pela sua Corrente de ar.
A sua profunda reflexão sobre a sua qualidade de cidadão amarantino e militante do PSD, leva-me a contar-lhe o seguinte:
Em 5 de Junho de 1949, Henrique Galvão então deputado à AN, publicava no JN, na sua coluna habitual na primeira página o artigo: - A propósito de uma filarmónica .
5 de Junho de 1949 foi domingo e Amarante festejava as Festas do Junho. A importância do artigo não tirava os amarantinos do largo de S. Gonçalo onde outras filarmónicas, a da PSP do Porto e BV da Lixa, passavam rua acima, rua abaixo, intervalando nos coretos passe-dobles, marchas ou luzidias peças avulsas de música clássica. O Cine-Teatro iria encher, à noite, com o filme Capas Negras. “
Contava Galvão ,no seu artigo, a história de uma filarmónica em que alguns sócios não andavam contentes com a direção ,porque : " o Mestre da banda, elevado às culminâncias da regência da filarmónica , porque fora antes, no agrupamento, flautim muito afinado e assíduo aos ensaios, gozava fama de excelente pessoa e de bom chefe de família - mas sabia pouco de música séria – além de que, dava satisfação à família o facto de ser ele, simples flautim sem probabilidades de trepar, o mestre da Banda. Gostava porém da batuta, do lugar proeminente que ocupava no coreto, de ler o seu nome citado na gazeta da terra. Para esconder as suas insuficiências recorreu ao tambor da charanga, que escrevia crónicas no jornal e lhe redigia os discursos quando havia festa grossa – mas valeu-se das manhas e esperteza de um primeiro clarinete que tocava de ouvido, mas parlapatão e bastante desacreditado na vila, por motivo das leviandades que haviam comprometido o cofre da sociedade...além deste apoiou-se também o mestre da Banda em alguns outros músicos já assobiados por desafinação crónica e fífias sistemáticas…”
Não acredito que Henrique Galvão alguma vez tenha ido às festas de Amarante ou que em alguma outra ocasião tenha ouvido tocar a filarmónica e muito menos conhecido o seu maestro, tambor ou primeiro clarinete.
Não o vou maçar mais com o artigo, que é longo e interessante, até porque as similitudes com a “Banda” que aí toca e as suas exibições nos diversos coretos, segundo o meu Amigo, são bastantes .
Contudo deixo mais este bocadinho do texto de Galvão, para o provocar.
Com tais peripécias dos " filarmónicos”, era cada vez maior o descontentamento dos sócios, a tal ponto que"... Na farmácia, no café, no mercado, se dissesse de toda a Banda mais do que Mafoma dissera do toucinho".
Como normalmente acontece foi tudo explanado em Assembleia Geral da Filarmónica a pedido de um sócio mais descontente e levado a votação.
Para espanto de todos "Viu-se então esta coisa, que nos tempos em que a Moral andava pelo mundo, seria espantosa: Quando o homem, perante a multidão dos sócios descontentes, disse em voz alta, o que todos indignamente diziam em voz baixa, na farmácia, no café, no mercado e pediu que se pusessem em ordem e decência as coisas da filarmónica
-os sócios mais honorários e importantes levantaram –se a louvar o Mestre da banda e a declarar que o próprio primeiro clarinete, à parte aquela mania de se associar ao cofre da Sociedade, também era muito simpático. Os músicos mais desafinados protestaram e quase provaram que tocavam Wagner e Mozart desde crianças e que a 5ª sinfonia não tinha segredo para eles. O sócio interpelante ficou muito mal visto - e a banda continuou a tocar no coreto da vila, com o mesmo Mestre, com o mesmo clarinete, o mesmo tambor e o mesmo repertório."
Assim se estava na oposição em 1949. Desassombradamente e com verticalidade. Vivíamos em pleno apogeu da ditadura salazarista. Agora, sessenta e dois anos depois ,os nossos políticos, não fazem política , tomam posições dúbias, mandam às malvas a verticalidade de modo a puderem fazer parte das Bandas. É tudo uma questão de ouvido... já que a música é tilintante.
Voltando à sua " Corrente D'ar ", não julgo estarem em perigo as tradições democráticas ou a falta de valores cívicos . Aquela Amarante cultural dos poetas e pintores , das paisagens e gastronomia, é agora obrigatório juntar a Amarante da música clássica e do bailado, ultimas apostas para uma Amarante multicultural da qual a sua Banda é exemplo de pioneirismo.
Vê-la-emos arruar na sua força máxima na nova avenida para Vila Meã , em sextetos de metais na inauguração de algum novo parque empresarial ou em quartetos de cordas, nas esplanadas da marginal entre o Mercado e a praia Aurora, levando na lapela a coroa e entalada na aba do chapéu a fotografia, a preto e branco, de D.Joao III. Com certeza não faltarão no Largo de S.Gonçalo workshops, dados pelos filarmónicos mais “expert” ,na tentativa de trazer mais apoiantes para a música.
E nesta aposta pela música e espaços culturais, vale a pena refletir no ditado que diz - Conforme se toca, assim se dança.
O meu caro Amigo conhece as bandas e os coretos. As festas grossas são em 2013 e até lá muito se vai tocar....e dançar. Vamos esperar que tudo não acabe com o Presidente da Filarmónica, numa atitude humanitária que lhe vem do mester salvador, de que se ocupa na vida civil, querer ser o mestre da Banda e o agora mestre, aceite, voltar a ser flautim, ainda mais afinado, com grande desespero da família e músicos mais chegados. Recomendo-lhe , a este propósito, para estes dias mais frios o filme - Ensaio de orquestra, de Fellini, onde uma discussão entre um dos músicos e o maestro, severo e ditatorial, é o inicio para uma revolta incontrolável. O caos que se instala é quebrado pela impressionante cena final, uma inserção absurda e deliciosamente felliniana.
Não queria acabar esta longa carta sem referir uma outra situação que nada tendo a ver com Filarmónicas me lembrei.
Aquando da campanha para a presidência dos Estados Unidos em 1960 a campanha de Kennedy , referindo -se a Nixon, fez a seguinte pergunta aos cidadãos eleitores americanos: “Você compraria um carro em segunda mão a este homem?”. Nixon perdeu as eleições .
Imagine o meu Amigo, a " sua " Banda a tocar no coreto e do coreto ao lado, o Maestro da outra Banda, de bigode bem composto e velho nas manhas da regência, puxar os óculos à
testa e perguntar à assistência: Vocês acreditam que eles são capazes de tocar um passe- doble?
Deixo à sua imaginação livre a resolução da charada porque, como diz o ditado “A galgo bom não lhe escapam lebres".
Quanto ao meu silêncio , meu caro Amigo, três razões o provocam : é que para lá do mau ouvido , a Banda toca muito mal e como diz o ditado, - Silêncio também é resposta.
. “ …E foi assim, no ambiente romântico de uma noite serena e quente, que terminou o grande dia das tradicionais e faladas Festas da Vila de Amarante. “, dizia o JN do dia 6 de Junho de1949, ao comentar as Festas de Amarante
Aproveito, meu caro Amigo, para lhe desejar um 2012 ... com boas danças.
Com um abraço,
João Sardoeira
NOTA : O texto de H Galvão foi publicado no JN de 5 de Junho de 1949, depois de o Presidente da Assembleia Nacional, Mário de Figueiredo, lhe ter cortado a palavra, declarando o assunto encerrado, na discussão do Aviso Prévio sobre a administração de Angola.
H. Galvão era Inspector Superior da Administração Colonial."